domingo, 29 de novembro de 2009

Para vós, mulheres

Nasceram tímidas
em sulcos inconfessos do viver,
escravas dos dias possantes,
calvas de terror místico
ou húmidas de submissas,
carne que o macho fecunda
por capricho de a querer cativa.

Foram inatas germinadoras
de reprodutores carnais,
tão longínquas
que nem sentiam o júbilo prazer
subir nos ossos dos seus entalhes,
apontados sem remorsos
na obrigação de criar os seus.

Anos passaram.
Séculos de desejo oprimido,
cultos de mãe
em templos de razão.
Fêmea de um só mercador
que a embriaguez sovava e vendia,
ao preço de uma discussão
sem diálogo,
por um pouco de pão e dor.

Cresceram revoltas,
motins de vergonha, pesadelos
conquistaram um vazio
que sempre foi seu,
mas que a voz máscula
confinou ao fracasso.
Tornaram-se ousadas
como os homens ousados foram,
disseram ao mundo
o sentido condigno do querer
tão visível
que os carrascos lhes foram
comer à mão.

Quiseram ser grandes
e foram enormes.
Tiveram medos
mas foram audazes,
lutaram amarguras,
decidiram momentos de decisão,
e amaram os homens
com gemidos de intimidade
que eles jamais haviam amado.

Criaram seus filhos
com o mesmo ensinamento
de suas mães,
gritaram trabalho
e num rasgo de independência
quiseram ser livres
e foram a liberdade,
a boca reivindicando igualdade.
Foram a evidência
das suas vontades,
nos lábios dos severos justos.

… Numa admiração às suas vitórias
tão duramente esboçadas
quão difíceis de encetar gloriosas,
a vingança tardia,
de quantas inúmeras mulheres,
por elas foram lápides
antes da morte!
Fossem os homens justos
e nenhuma mulher
seria a ausência…

… como foi possível
tantos anos, tanto egoísmo
se homem e mulher
são diagonais da mesma ossada,
que se interceptam
em qualquer ponto
de uma recta algures,
onde a vida
completa a vida!

Meretrizes

Andam pálidas pelas ruas
as almas das meretrizes,
vão nuas, as vergonhas suas
apedrejadas pelas vielas
sofrem no tecto do mundo
e à noite choram às luas
saudades varinas e horas lindas.

Sobre os brados da memória
correm sonhos em clave de sóis sós
sustidos com a força de dó...
andam sombras perdidas dos passos
são mulheres, outras meninas,
e todas são ninguém...
... um ninguém que magoa
ao sentir-se assim, entre silêncios
e esquecimentos,
como andarilhos velhacos
de todo o pensamento.

Bêbados sentidos

Eu bebi à farta
num dia apenas banal
que o diabo atiçou à loucura
e num pestanejar
anoiteceu a fúria e a raiva
até aos estilhaços do sangue
que o silêncio da voz guarda
em lençóis de angústia.

Amanheci sem alarido
havia um sol meigo em céu aberto.
Nada de novo na monotonia
uma líquida desconsolação
fustigava a memória
que não sentia.

Bebi de novo sem tréguas
o vinho das bruxarias
e transloucado adormeci
à sombra de um silêncio frio
como quem pariu um naufrágio
onde não havia mar!...

Choro

Queria chorar
o corpo pulsava, ardia
no olhar a dor gemia
e eu só queria chorar
uma malga de tristezas
e não tinha lágrimas para brotar
nem sal para as salgar
ou voz que as soubesse colorir
sem sentir o rosto húmido
com saudades do vazio que fica
depois do querer acabar.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O mel do sonho

Cinco dias vivi luas
no rosto de uma mulher,
morena e doce silvestre
como o entardecer ao fim do sol
da sua companhia.
Cinco dias e mais cinco
foram dias sem parar
no entrudo do meu amor cadente
como a brisa dos beijos traquinas
que soprava dos limites do ar
- lá, onde o tempo se demora
perdido dos homens e do chão,
num namoro de horas imortais
que ninguém mais conhece senão eu,
alucinantes eram os voos a pique
sobre o carinho dos seus contornos,
e afundar os sentidos seduzidos
na plena garra dos ardores,
espalhar-me o corpo sobre a vida dela
e vivê-la tudo no mais fundo sentimento...
no mel do sonho!

Apaixonados

Venerados, os apaixonados
gracejam pequenos quartos-minguantes
num céu de amores imenso e fundo
quase ravina, quase escarpa, quase nada
porém, um quase tudo a cada momento.

Contentes com o dia novo
os olhos brincam carinhos tontos
com a ponta da língua e a voz,
ausentes num apelo dos corpos
que em desejo desabrocham os sonhos
que a noite alberga pelos mais belos silêncios
que a vida pariu com mimos de mãe
e risos ao futuro,
para lá do horizonte...

Eras amor

O meu amor é louco
tem nervos de mulher
tem tudo e tão pouco
do que na vida se quer.

O meu amor é guerreiro
vestido com carinhos em seara
que duram o tempo inteiro
e da alma nada os separa.

O meu amor mora com a idade
num baile de idiomas gentios
com requintes de luminosidade
são sentimentos de todos os estios.

Ó meu coração, tu flamegas o olhar
inundas as ermas circunstâncias
quando aos pulos sinto-me amar
nos píncaros de todas as distâncias.

Grão de amor

Matreiro, um grãozinho de mulher
enganou-me o corpo,
com carícias no coração,
e sonhos no rosto,
urdiu o amor que era meu amigo
e cachopos fugiram de mim
para onde não sei.

Maroto... o grãozinho!
Ainda o lembro bem, o safado.

Búzio confidente

Seguro nas axilas
um búzio já velho,
amargurado,
numa maré pouco feliz.
Junto ao seu aconchego
outro búzio mais,
e num lamento
segredo-lhes murmúrios
coisas de nada.

Pouso-os no bordo do colo
absurda voz
e sonho.
Falamos de tudo,
de mim e de ti
... até de nós!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Viagem que sou

Sou a viagem que sou
sei-o!
Mergulho as mãos
no absurdo.
…Rumo ao irreal,
Como barcos sem leme
Sulcando os mares de azul.

Sei que sou a viagem…
Degrau a degrau
subo as muralhas débeis
da palavra,
e do cume voarei
de braços abertos sobre
as praias de um lençol,
surdamente inspirado
em vezes de estranheza
e tímidos medos…

Sou uma viagem
sem retorno…
-regressos não há.
O fim não sei,
Mas o amor é o meu tempo!

Amante do sonho

Lanço-me num esvoaçar
com o lume nos olhos triviais
e o peso dos dias assim.
Deslizo seguro ao vento
como ave pelo ar livre
e sinto aquela emoção doce
que tem o sabor da paz
dentro de nós,
no meio do mundo
e sono amante do sonho
onde todos os pássaros pousam
para aprender a voar
o destino que lhes coube em sorte!

Calor ósseo

Anda amigo, corre as sombras
e vem plantar comigo
as memorias da utopia.
Anda…
soltaremos os filhos dos olhos
nos cumes dos ventos,
sonharemos o sentimento
e seremos os donos do espaço vazio
onde as almas albergam o sol!
Sorriremos, enfim!
…E o tempo sempre a crescer
na ausência do momento banal
em que não sabemos se somos gente
ou apenas uma forma de medo quente
-calor ósseo, pensamento…

Quero-te

Ainda que ausente
e sem regresso de mim,
quero-te muito
porque o coração vislumbra por ti
um amor que não se desencanta
só porque o tempo aborta
e a vida se farta da paixão…

…e no que fica de nós, amantes
quero que sejas desmedidamente feliz
algures onde te desejes
adivinhar a vida.
embora aquém desse lugar
eu terei sempre distinta a lembrança
com saudade de amor,
(hoje, ardente e vivo
amanhã mais amigo)

Ao olhar no céu o brilho do sol
- é que também tu,
foste um sol da minha quimera
e se o adeus que nos hidrolisa
os sentimentos,
alveja-me de sofrimento,
também o sorrio
por tolerante me teres ensinado a amar.

Ainda que nada se apague
de forma alguma,
é na lealdade para comigo
dizer-te o muito que te devo,
quero-te a de todas, a mais feliz!
Amo-te muito!

Proscrito

O mar entra-me pelos olhos
como verdades calcetadas de sal
dúvidas e magoas.
Um grande vazio engole o corpo
por inteiro, a praia e os peixes
e às vezes , nas estrelinhas do momento
quase me sinto feliz…
Como oásis no desejo
a ilusão demora um gesto,
o riso que o coração grita
é somente o silêncio velhaco da tristeza.

Medonho, o espaço mingua alucinações
nas vértebras do pensamento vazado
pelas mãos do mar e da sombra
com vontades marujas de partir
em busca do horizonte…
-por pirraça os barcos passam na foz
dos olhos húmidos de inquietação,
passam longe demais para o agarrar,
nem o mar, nem os barcos
nem os sonhos que deixam esculpidos
nas águas da minha solidão!...

Matemática de emoções

Subtrai-me
que eu adiciono-te
com beijos fecundos
e alma boa,
com gesto meigo
de quem não te esquece.

Divide-me
que eu transbordo-te
entre carinhos ternos afagos,
devoro-te nua e singela
e no desarvorar da manhã
dou-te um beijo
e digo-te
“até logo querida”.

Eleva-me ao expoente
e eu valho por dois
valho por mim e por ti,
e por nós os dois teremos a matemática
no âmago dos sentidos
…saberás que eu e tu
não somos dois
mas um único olhar futuro!

Equações do tempo

Somo ao hoje
o ontem da memória
somo cada ontem ido
a cada anteontem
faço-o todos os dias
para que os olhos tenham
o prazer de se verem vivos!...

E a soma dos dias
faz envelhecer,
amadurecer a fruta do pensador
adoece as almas
que apodrecem na inquietação
dos anos atempados
das grandes dúvidas
fora do claustro do sangue
gritantes corpos na soma
da vida somada em álgebras do coração
emocionado sentimento…

Sonhos

O sonho ilumina
é brincadeira dócil do tempo
é o tempo inteiro de uma vida
uma ventania que alivia
outra mágoa que se sente
no revés do dia
pleno e ausente, quente
o ópio do pensamento
que a noite aclama
e o sol acalenta, nu
com o sonho na voz
e os olhos no poente do momento!

Sonhos são lufadas de força
que dão garra à vida
e se lançam à dor, lutam ousados
no calor do silêncio,
em forma de desejos vazios
entre sonos e fantasias
com o coração bêbado de cores,
numa memória que clama voraz
o que sente
nem nunca esquece
por mais que queira e tente!...

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Desertificação

Não há homens nos campos
e os desertos ardem
na própria secura dos ossos.
As terras estão lavradas a sangue
por sulcos movediços
em que os animais se perdem
do tempo.
A paisagem é o verde sofrimento
da carne,
a mágoa confunde-se
na medula do horizonte
e as flores latem seus despojos
entre as cartilagens
de um ângulo
roubado num único lamento.

Não há pastores nos montes
e os anjos já não cantam
o lume dos olhos.
E quando o outono finda
os homens hibernam com as aves,
em bandos de poetas clandestinos.
A primavera trá-los-á de novo,
nos primeiros abraços de luz,
e o amanhã é um motim
na fé dos mais pobres.
... Longe da voz,
a ângustia curva de um vento
que chora de mão em mão,
de silêncio em silêncio.

Eras amor

Eras uma borboleta e eu perseguia-te
nas traseiras do teu tempo
ateado de distâncias e crespúsculo.
Eras um bicho perdido, indefeso
e eu era um caminho de dias vendidos
por um punhado de sentidos enganados.
Eras uma vírgula pequenina
que eu punha à frente das
minhas palavras, emoções!
Eras um sonho em violento
com quem dormia a transparência do olhar.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Sarcasmo

Sem esboço nem palavras
a humilhação olhou fria e funda
o riso do sarcasmo vaidoso e pobre
como se num lapso do instante feroz
o pensamento fosse castigo e dó,
clemência e ódio,
num grito baixinho
que a ninguém perturba
senão ao pensador ferido
que sem querer,
perdoa mas não esquece.

Carta a um irmão distante

Irmão

... a mãe morreu
no bolor do silêncio
que trazia nos olhos.
Arrancada à vida
devolvi-a à terra
com lágrimas por dentro.
Nas traseiras do quintal
calcetei-lhe o sono
com flores de luz que duram muito
e sabem poemas de cor...
Rezei o terço à minha maneira
com palavras inventadas do luto
que me mordiscava a voz.

Fiquei ao lado dela
até a sentir aninhar-se
nas formas do chão.
Falei-lhe de ti, desse tempo
inconstante
- o pior da morte é a morte não ter voz
e teimar em ficar calada por muito tempo!

A mãe morreu natural.
Já nada me prende aqui.
A herança é pobre demais,
fica com ela que eu parto agora
à procura de melhor sorte.

Ventanias

As brisas dão no meu moinho
ora mansas, ora raivas
ou se se dão com mais vileza
não são brisas no meu moinho,
são ventanias de pai bêbado
sovando as razões do desgosto
que embebem as horas esquecidas...
as brisas giram no pano das pás
depois das revelias... na roda da mó
a fraqueza dos gritos amanhece
branca como a farinha
que um moleiro ventoso o é,
e todos os dias no fim do sono da noite
o sol bate na cal do meu moinho
aguarela vermelha na brisa das pás do vento
enquanto espero as ventanias.